25/10/2012 14:46, Por Paulo Kliass - de Brasília
Há quase quatro décadas atrás, o economista Edmar Bacha cunhou a expressão “Belíndia”, na tentativa de caracterizar o Brasil como país portador de uma série de contradições em sua estrutura social e econômica, a ponto de incorporar elementos de uma Bélgica e de uma Índia. Desde 1974, quando o artigo foi publicado, muita água passou debaixo da ponte. O Brasil fez sua transição democrática, vários planos de estabilização monetária foram tentados e falharam até o Real, nosso País conquistou 2 Copas do Mundo de futebol, o professor e pesquisador da PUC-RJ acabou virando banqueiro. No entanto, continuamos a ser uma Nação que mantém um elevado nível de desigualdade, que incorpora de forma impressionante o equilíbrio entre o moderno e o arcaico, que assiste de forma quase passiva a práticas ancestrais de exploração em seu cotidiano. Em essência, uma pequena minoria da população que continua viver em um universo que Bacha aproximava da Bélgica dos anos 70 e a imensa maioria do povo que sobrevive em condições análogas à maioria da Índia daqueles tempos.
Nossas elites adoram propagar aos quatro ventos que, finalmente, teríamos chegado ao progresso e ao novo patamar da modernidade. O aprofundamento do processo de globalização e a abertura de mercados permitiram a internalização de um conjunto de elementos simbólicos expressivos do capitalismo contemporâneo. Em nossos centros comerciais, podem ser encontradas as mesmas lojas e as mesmas marcas consideradas o supra-sumo da sofisticação, antes exclusivas das mecas de consumo do resto do mundo ocidental (e agora cada vez mais também do oriental…). Por outro lado, é importante reconhecer que uma parte do Brasil realmente avançou rumo a esse universo da vanguarda econômica e tecnológica. Apesar de mantermos a típica marca dependente e periférica de nosso capitalismo, logramos algum destaque em alguns poucos setores.
BMW e as demais marcas da pseudo modernidade
Na semana passada, representantes do governo federal comemoraram a decisão da multinacional automobilística – BMW – de instalar sua primeira planta industrial em solo tupiniquim. Como das outras iniciativas envolvendo as demais grandes corporações multinacionais, imagina-se qual tenha sido o jogo pesado de guerra fiscal entre os estados pretendentes, em que as empresas acabam por receber uma enormidade de benesses para sua instalação. Dessa vez, Santa Catarina foi o preferido, com o município de Araquari. Aqui no Brasil, o simbolismo de um veículo dessa famosa marca ainda é associado ao paradigma da modernidade e da riqueza. Mas é bom não se entusiasmar muito não, pois a vinda da concorrente alemã Mercedes Benz há alguns anos atrás, não deu muito certo. Em 1999, começaram a fabricar em Juiz de Fora (MG) um modelo de automóvel bem chinfrim, depois terminaram por suspender a linha de montagem por vários anos e agora fabricam mesmo são os caminhões velhos de guerra.
Ainda no campo da indústria automotiva, também foi anunciada há poucos dias com muita pompa a primeira revenda de veículos da famosa marca Rollls Royce em nossas terras. Cada sonho de consumo deverá custar a bagatela de R$ 2,3 milhões e as expectativas de vendas do grupo não ultrapassam a quantia de uma dúzia a cada ano. Alguém aí falou em elite ou em elevada concentração de renda? De qualquer forma, para muitos apenas a inauguração da loja exclusiva representaria, por si só, mais um passo no caminho do ingresso no patamar da modernidade civilizatória contemporânea. O entusiasmo nesse meio aumenta quando se leva em conta os boatos a respeito da possível instalação de outras montadoras de veículos de luxo, como Audi, Land Rover e Volvo.
Tudo isso se soma ao contexto dos consecutivos recordes de vendas de helicópteros e de jatos executivos em nosso território. A Embraer, antiga empresa estatal privatizada sob o governo FHC, representa esse sincretismo de progresso tecnológico e modernidade de padrão de consumo. O Brasil logrou obter um significativo avanço nesse setor importante da indústria, o ramo da aeronáutica. Como esse, existem alguns poucos nichos em que nos fazemos presentes no amplo espectro das oportunidades da economia. Ou seja, ainda estamos muito longe ainda da vanguarda na nanotecnologia, na biotecnologia ou na física quântica aplicada.
A persistência secular do trabalho escravo
Porém, simultaneamente a esse paraíso aparente do capitalismo contemporâneo, a Nação mal consegue esconder suas mazelas sociais. E não falo aqui apenas de níveis salariais incompatíveis com uma vida digna para seus trabalhadores ou da profundidade da desigualdadesocial e da concentração de renda. Refiro-me à condição básica e “sine qua non” para a configuração do modo capitalista de produção: a existência da força de trabalho, teoricamente “livre”, para ser vendida ao capital em troca de salários. Afinal, todos sabemos do grande esforço empreendido pela nação hegemônica do capitalismo no século XIX, a Inglaterra, para acabar com o trabalho escravo em algumas colônias pelo mundo afora. Era um dos pré-requisitos para a universalização das relações capitalistas de produção.
A incorporação desse quesito em nossa legislação só ocorreu em 1888, com a chamada Lei Áurea. E isso depois de bastante resistência e polêmica, mas principalmente após muita luta por parte dos abolicionistas. Aqueles que eram contrários à medida, apresentavam inclusive argumentos de natureza econômica, bastante semelhantes aos catastrofismos que estamos cansados de ouvir nos dias de hoje. É claro, pois o País iria quebrar: afinal, não haveria condições de manter nenhuma atividade empreendedora rentável com o pagamento de salários àqueles que trabalhassem! Uma loucura!
Pois bem, passaram-se mais de 124 anos e o Congresso Nacional mal consegue aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que condene de forma mais efetiva o trabalho escravo. Isso porque, apesar do Código Penal prever o crime de escravidão, essa prática absurda nunca foi eliminada em nossos campos e cidades. Desde 2001 tramita no interior do poder legislativo, aos trancos e barrancos, a PEC 438. Ela nada mais estabelece que as propriedades onde forem evidenciadas práticas análogas ao trabalho escravo sejam desapropriadas para fins de reforma agrária. E haja resistência para sua aprovação! Afinal, há vários casos de parlamentares envolvidos nesse tipo de crime e o próprio governo federal não ajuda muito, pois continua a oferecer crédito público e ajuda financeira do Estado para empresas portadoras desse tipo de condenação judicial. Como sempre, a certeza da impunidade estimula a transgressão e a exploração.
Modernidade e atraso no coração do sistema
Isso significa que a mesma formação social que mantém com orgulho o binômio da modernidade capitalista, aqui representado por BMW & EMBRAER, tem convivido de forma até cordial, ao longo de mais de um século, com a prática do trabalho escravo, um estágio escandaloso do pré-capitalismo por definição. O fenômeno é tão evidente e escancarado que um grupo de pesquisadores universitários já elaborou até um importante e detalhado “Atlas do Trabalho Escravo no Brasil”. Segundo dados do Ministro do Trabalho e Emprego e da Comissão Pastoral da Terra, mais de 42 mil trabalhadores teriam sido libertados de tal condição, desde 1995.
A questão que se coloca é investigar as razões pelas quais a sociedade brasileira tem contemporizado com a prática do trabalho escravo por tanto tempo. É compreensível que as normas atuais sugeridas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), e incorporadas à conduta de fiscalização pelos órgãos da justiça trabalhista, não se restrinjam aos estereótipos das gravuras dos tempos em que nem existia a fotografia: os indivíduos acorrentados e sofrendo as torturas no pelourinho. Hoje em dia são consideradas ilegais e criminosas as chamadas condições em que os trabalhadores sejam flagrados em “situações análogas ao trabalho escravo”.
Nesse caso enquadram-se: i) a ausência de registro em carteira profissional; ii) as jornadas de trabalho superiores à prevista na legislação; iii) a impossibilidade de sair ou abandonar o “contrato” de trabalho; iv) as péssimas condições de segurança, higiene e moradia; v) a obrigatoriedade de fazer compras nos armazéns da empresa, com desconto no salário líquido; vi) desconto das despesas antecipadas com transporte, instrumentos de trabalho e as comissões dos agentes intermediadores – os chamados “gatos” ; entre tantos outros.
E não imaginemos que tais práticas se restrinjam aos cantões afastados do território nacional, em atividades agrícolas, de desmatamento ou de extrativismo, sempre longe do ambiente urbano. Há um conjunto de denúncias envolvendo o ramo de confecções para grifes famosas (como Gucci e Zara), onde os fornecedores são geralmente empresários explorando mão de obra ilegal em grandes metrópoles, com imigrantes clandestinos. São freqüentes também as denúncias atingindo o ramo da construção civil, inclusive em licitações operando com recursos de programas do governo federal, como o “Minha Casa, Minha Vida”. Ou seja, no coração do assim chamado “pólo dinâmico”, no interior do estereótipo da modernidade, o trabalho escravo se faz presente e todo mundo sabe disso.
Pela aprovação da PEC 438 no Senado
Passada a ressaca eleitoral, esperamos que maioria do Senado Federal consiga finalmente vencer a resistência dos segmentos contrários ao nosso afastamento do século XIX e aprovem de forma definitiva a PEC 438, agora sob a código PEC 57A no cipoal da tramitação legislativa. Esse é um passo essencial para que o trabalho escravo seja efetivamente passível de punição.
Trata-se de condição essencial para superarmos a síndrome de Belíndia, fazendo que as condições de cidadania e igualdade sócio-econômica sejam generalizadas para o conjunto de nossos habitantes. Afinal, se o Brasil pretende ser respeitado pelos demais países e tem a intenção de exercer uma liderança efetiva em termos regionais e mundiais, é passada a hora de apagar essa mancha de sua história. Aqui dentro e pelo resto do mundo, os setores democráticos e progressistas aguardam ansiosos por tal decisão.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10